30 ANOS DO TETRA: DERRUBANDO OS MITOS
Quando se fala nos títulos da Seleção Brasileira em Mundiais, é normal ler em artigos da imprensa que a Copa de 94 foi algo como um jogar feio para ganhar. A Seleção de 94 é um pouco tratada como o patinho feio das seleções. Era preciso acabar com essa história. Um usuário do Twitter, nomeado como József Bozsik se encarregou disso. Reproduzi exatamente o que ele publicou lá. Vale a pena seguir o fio.
Após tantas eliminações traumáticas, o Brasil conseguia finalmente o Tetra. Contudo, aquela seleção é cercada de controvérsias. Vários mitos persistem até hoje. Esses mitos desviam o nosso olhar do ocorrido. Está na hora de derrubá-los. 🧶
MITO 1: TIME DEFENSIVO, DE CONTRAGOLPE E QUE JOGAVA POR UMA BOLA
Você já deve ter escutado que a seleção de 94 era defensiva, retranqueira, jogava no erro do adversário e que apostava nos contragolpes com Bebeto e Romário. É justamente o inverso.
A seleção de 94 teve a maior posse de bola da história de uma seleção brasileira numa Copa (59,6%). Apenas a Colômbia teve mais posse em 94. Tínhamos mais posse do que a Holanda de 74 (57,1%). Jogávamos de pé em pé, variando o passe curto e longo, tabelando e avançando.
A seleção de 94 também é a 2ª em nossa história com mais dribles por jogo (17,3), ficando atrás apenas de 70 (21,2). Também fomos a 4ª seleção com mais chutes ao gol. Longe de ser sisuda, o Brasil jogava sempre no campo do adversário, driblava muito e criava muitas oportunidades.
Placares apertados não traduzem o volume ofensivo dessa equipe. Na semifinal, o Brasil teve 66% de posse de bola, chutou 28 vezes ao gol e perdeu várias oportunidades. Na final, 58% de posse, 24 chutes (contra 7 da Itália), inúmeras chances, mas Pagliuca fez 10 grandes defesas.
MITO 2: 94 ERA RUPTURA COM O FUTEBOL BRASILEIRO
Parreira dizia que a seleção de 94 praticava os mesmos princípios do futebol brasileiro: defesa por zona, posse de bola, controle do ritmo, aproximação, drible, funções. E ele sempre esteve certo.
Sem a bola, defendíamos num 442 por zona, mas com encaixes por setor. O Brasil pressionava o adversário desde a saída com Dunga subindo para pressionar o portador. Com a bola, esse 442 virava um 4222, modelo dominante nos anos 90 no Brasil. Raí e Zinho viravam meias internos:
O ataque funcional de Parreira organizava o time a partir do lado da bola como foram todas as seleções brasileiras desde 1970. Com a bola do lado direito, Jorginho subia e era acompanhado pelo meia (Raí ou Mazinho), pelos volantes e pelos atacantes. Percebem a movimentação:
O meia-esquerda (Zinho) centralizava, e o lateral do lado oposto fazia uma diagonal defensiva. Mauro Silva fazia a saída de bola entre os zagueiros, mas logo avançava como um 5. Vejam como o Brasil concentrava volantes, meias e atacantes do centro a direita, e trocava passes:
A bola girava para o lado esquerdo e o time balançava para o lado oposto. O lateral-esquerdo subia no corredor e o direito fazia uma diagonal defensiva:
Vejam como o Brasil concentrava meias, volantes e atacantes do centro a esquerda com a bola do lado esquerdo, enquanto o lateral do lado oposto (Jorginho) se posiciona numa diagonal defensiva mais aberta:
O meia do lado oposto centralizava ou mesmo atravessava o campo para trocar passes. Vejam esse passe de Raí para Romário contra a Rússia. Com Mazinho, a função era a mesma, só mudava a característica do jogador.
O Brasil sabia aproximar os jogadores para trocar passes curtos, mas também controlava o ritmo e a distância entre os passes. Sabia acelerar o jogo ou inverter rapidamente de lado. Vejam esse balanço da bola do lado direito para o esquerdo:
O Brasil também avançava em campo através das tabelas, tocando a bola e indo adianta para receber. Galvão comemora: “finalmente alguém joga bola bonito nessa Copa”.
Essa seleção usava muito os lados do campo para triangular, mas também usava muito a rotação de espaço entre os jogadores. Os atacantes recuavam, os meias avançavam. Tocar a bola, passar, se mover, trocar o espaço. Outra característica da escola brasileira:
O Brasil de 1994 nunca foi uma ruptura com a história do futebol brasileiro construída desde os anos 1940. Com a bola, Parreira usava e adaptava os mesmos princípios: diagonal ofensiva e defensiva, aproximar no setor da bola, avançar pelos movimentos de tabela, assimetrias, etc.
MITO 3: 94 ERA O FIM DO JOGO BONITO
Um dos temas mais controvérsos, pois dependente de preferências estéticas. Contudo, a seleção de 94 foi vista pelo mundo como uma continuação do jogo bonito. Vejam o que diziam jornal L’équipe: “foi bonito, foi vivo, foi o verdadeiro futebol”.
A Folha de SP publicou textos de Cruyff durante toda a Copa. O holandês dizia que o Brasil tinha reecontrado a sua “magia futebolística”.
Na véspera da final, Cruyff afirmava que a seleção de 94 era a representação do futebol-espetáculo: “Acho que a seleção brasileira jogou esta Copa contra todos. Só a Holanda, em alguns momentos, aderiu à idéia de ganhar jogando no ataque”
Mais do que isso, Cruyff inseria a seleção de 94 no mesmo panteão estético da seleção holandesa de 74 ou brasileira de 82. E basta observer o campo para ver a beleza do nosso jogo:
A seleção brasileira de 94 tocava a bola de pé em pé, controlando os ritmos, buscando tabelas, desfilando drible e técnica. Era a continuidade do jogo bonito brasileiro:
MITO 4: VOLANTES BRUCUTUS
Alguns defendem a tese que a seleção de 94 consagrou o jogo defensive com volantes defensivos e pouco técnicos. Uma grande mentira. Mauro Silva e Dunga eram extremamente técnicos.
Mauro era um 5 de classe, com ótimo domínio de bola, e passe curto e longo. Dunga foi um dos melhores passadores da história do futebol brasileiro. Em toda história da copa, Dunga em 94 ficou apenas atrás de Xavi 2010 em número de passes certos. Vejam a classe da dupla:
Dunga é o melhor jogador da final. Praticamente não erra passes. Um recital como organizador do time que orgulharia o Didi de 58. https://www.youtube.com/embed/-RilC8JllWs
AS ORIGENS DOS MITOS
PARTE 1: OS “4 VOLANTES”
Durante sua história, o Brasil tinha tido grandes meio-campistas como Clodoaldo, Gerson, Riva e Pelé. Depois, Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Em 78, unia Cerezo, Zico e Rivellino.
Uma parte da fama de 94 deveu-se ao fato daquela seleção não ter um gênio no meio-campo. Tínhamos extraordinários jogadores, mas não um gênio. Além disso, Mazinho era um segundo volante no Palmeiras, e Zinho era um terceiro homem de meio. Faltava o nosso genial “meia-atacante”.
No entanto, Parreira não deixou de fora nenhum gênio em prol do sistema. Parreira reuniu quatro meio-campistas extraordinários e técnicos, independente do rótulo de “volantes”. Nenhum gênio ficou de fora da convocação ou do time titular.
Raí era o nosso melhor meia-atacante. Excelente jogador, mas não gênio como Zico ou Pelé. Foi o melhor em campo contra Rússia, excelente contra Camarões, e virou bode expiatório no empate contra a Suécia. Não jogou mal como se diz e poderíamos ter sido campeão com ele de titular.
Contudo, Mazinho também era um ótimo meio-campo. Estava numa fase extaordinária no Palmeiras, talvez o melhor jogador da equipe no primeiro semestre do ano. O Brasil jogou muito bem com o que tinha, com excelentes jogadores no meio, mesmo sem um gênio no setor.
PARTE 2: RIO X SÃO PAULO
Desde a posse de Ricardo Teixeira, a seleção brasileira era bastante identicada com o Rio de Janeiro. Eurico era o diretor até as vésperas da Copa de 90 e Lazaroni, historicamente vinculado ao futebol do Rio, era o técnico.
Para 94, a seleção era comandada pela dupla Parreira & Zagallo, figuras ligadas ao futebol carioca. Enquanto isso, o futebol paulista dominava com o São Paulo de Telê e o Palmeira de Luxemburgo.
No campo, o protagonismo estava nos jogadores oriundos do Rio ou derrotados em 90. A imprensa paulista batia forte em Parreira e cobrava a utilização de mais jogadores de SP/PAL como Sampaio, Edílson, Edmundo, Rivaldo, Evair, Roberto Carlos, Palhinha.
O São Paulo era o bicampeão mundial e Müller tinha brilhado contra o Milan. A imprensa paulista exigia a sua titularidade na seleção. Em 1993, o Brasil teve uma sequência negativa com apenas 3 vitória em 13 jogos. A pressão aumentou.
O Brasil venceu o Equador por 2 a 0 no Morumbi enquanto a torcida e a imprensa clamavam pelo retorno de Telê na seleção: https://www.youtube.com/embed/Ge5tuvgCOLA
O grupo de Parreira se uniu e passou a boicotar parte da imprensa esportiva, em especial, a Band e a Folha de SP. Não davam entrevistas. A animosidade aumentou. A imprensa paulista retratava a seleção de Parreira como símbolo de futebol feio em contraposição ao SP e Palmeiras.
Embriagado na festa do tetra, Ricardo Teixeira conclamava: “ganhamos, apesar da imprensa paulista, seus filhos da puta!”.
Já Romário reclamava: “jogamos contra a imprensa”.
A rivalidade continuou após o título. A seleção visitou Recife, Brasília e o Rio de Janeiro no retorno do tetra, e deixou a cidade de São Paulo de fora.
As reações de Telê e Luxa contribuíram para a construção de mitos de 94. Telê tinha uma coluna na Folha durante a Copa, e fazia questão de afirmar que vencíamos pelo talento e não pela tática. Telê também era um cético da dupla Romário e Bebeto.
Já Luxemburgo tratava o 442 de Parreira como anti-futebol ao contrário do seu 4312 que inseria um “terceiro atacante” (o ‘1’). Ambos estimulavam a rivalidade entre o futebol paulista e a seleção de Parreira.
A rixa chegou entre os jornalistas. O Jornal do Brasil anunciou o enterro do Apito Final, famosa mesa-redonda da Band durante a Copa, a mais crítica da seleção de Parreira.
Boa parte dos mitos criados em torno da seleção de 1994 nasce desse contexto de disputa de poder na CBF, da rivalidade entre cariocas e paulistas, das narrativas construídas em torno da escolha dos jogadores, etc. Como esse contexto, esses mitos estão caducos.
Está na hora de derrubar os mitos para encarar a realidade em suas nuances. A seleção de 94 era ofensiva, bonita de assistir, abusava dos dribles e do talento, honrou a história do jogo bonito brasileiro. Está na hora de lembrar afetivamente sem desculpas e poréns. Viva o tetra!
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Créditos da foto: Folha de SP
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